sexta-feira, 31 de julho de 2015

PAISAGEM DA INFANCIA

PAISAGEM DA INFÂNCIA. Aqui estou com mais um texto longo demais para face book, mas se você tem paciência e tempo vamos olhar esta paisagem
.
ÁGUA FRIA, cidade da minha infância, fim de mundo ou começo de mundo. Primeiras horas da manha. Acordo cedo, subo do morro Laranjeiras para desenhar esta paisagem que vivi, há cerca de 40 anos atrás. Aqui estou, mas ou invés de começar desenhar, começo escrevendo. Parece que a neblina rala da manha está cheia de palavras, de lembranças. A paisagem de agora está totalmente diferente da ontem quando vim aqui e decidi que viria hoje com meu bloco de desenho, no entanto, é a mesma paisagem, a paisagem da minha infância, da minha juventude; a mesma paisagem de 40 anos atrás e, talvez a mesma paisagem de séculos atrás. Alguma coisa não mudou por aqui. Eu acho que sabia que ía encontrar essa paisagem, por isso vim vê-la e, no entanto, é toda nova para mim. É uma paisagem comum, mas ao mesmo tempo é grande, e me ultrapassa. Por um instante me sinto crescer com ela.
A neblina enche o vale, criando uma cortina de névoa que se dissipa lentamente, tão lentamente que parece que levaria o dia inteiro nessa faina, mas não é verdade, a neblina muda rápido, vai criando forma e imagens que nos enlouquece quando estamos desenhando. Podemos observar isso, principalmente nas primeiras horas da manhã e nas últimas da tarde; as formas vão aparecendo vão surgindo, magicamente como no branco do papel fotográfico, no processo de revelação analógica. Mesmo conhecendo esta paisagem, ela me vem como uma aparição. Há qualquer coisa de mágico na forma como isso acontece. É como algo que se passa tranquilamente diante dos nossos olhos, mas não sabemos porque ou como e, em última instancia esse saber não interessa, o que importa é gozar este momento, é estar nele.
Volto os olhos para a ladeira, lá embaixo brilha o rio Alcobaça , cercado de sombras. Aos poucos a vista identifica, bois e cavalos pastando. A principio são apenas pontos negros, cinzas e marrons no meio do verde imenso, ondulado e infinito. Digo o verde, mas são vários verdes: verde musgo, verde bandeira, verde esmeralda, verde veronese, verde claro, verde escuro, verde ferrugem, verde brilhante, verde holandês, verde brasileiro e outros que a língua não sabe nomear, mesmo porque eles são cambiantes, passageiros, vão se fazendo e se desfazendo à medida que a névoa passa, brincando diante do sol.
Ao longe o horizonte desenha uma linha indefinida. É o horizonte. Uma névoa verde cinza transparente deixa ver parte do céu e parte das montanhas, quase em um mesmo plano; a própria névoa também se confunde com céu e montanhas. Dir-se-ia que o céu está antes e depois das montanhas, em finas camadas de neblina, chegando até aqui, onde estou sentado. Se alguém, observasse a paisagem de lá, diria que o lado de cá é o horizonte e que eu estou entre camadas de névoa, e que aqui o céu aqui se encontra com as montanhas, e que eu seria apenas um ponto
na neblina.
Com a câmara na mão, fotografo uma, duas, cinco, dez vezes esta paisagem, em seguida passo a desenhá-la em meu caderno de desenho de viagem. Sei que essa visão não cabe em nenhuma fotografia, nem em nenhum desenho. Esses meios são possibilidades de aproximações desta experiência de ver, os quais criam outras experiências, utilizo-os sabendo que construo imagens e que as mesmas são também experiências de uma outra ordem. Ao fazê-las meu olhar e meu interesse se deslocam da paisagem vista para a paisagem construída. No final tanto o desenho quanto a fotografia são imagens alheias ao que eu vejo.
Desenho linhas incertas, leves construo uma imagem tão próxima quanto possível da paisagem visível, mas também distante, a ponto de não se reconhecê-la. Assim, devido a natureza de seus procedimentos o desenhar difere também do fotografar e, entre essas diferenças incluo uma que quase nunca é percebida ou considerada com a devida importância: o estar no lugar por um determinado curso de tempo. Contrariando a rapidez e o olhar alheio da fotografia, o desenho (de observação) é, sobretudo , a experiência de se estar, obrigatoriamente por mais tempo e de observar um lugar, desenhando, por horas a fio.
Enquanto desenho, saboreio a linha surgindo do movimento do lápis sobre o papel. Às vezes não penso em nada, mas na maior parte do tempo pensamentos diversos pululam em minha mente, simplesmente porque pensar é inevitável. Mal ficamos em silêncio, pensamentos começam a se manifestar quase como uma energia autônoma, embora acreditemos saber o que pensamos, sensações, lembranças, maquinações sobre o que fizemos ou deixamos de fazer ou temos de fazer, surgem em fluxo e constroem paisagem oníricas que os surrealistas souberam aproveitar. Chamo essa duas vias desenhar e atentar para o fluxo de pensamentos de desenho associativo e, tenho motivos para acreditar que o ato de desenhar (de estar em um lugar desenhando) é uma das maneiras mais dinâmicas de trazer pensamentos à nossa mente e de nos fazer perceber como eles são alheios ou diversos ao que estamos fazendo ou do lugar em que estamos; por isso se o fazemos com consciência e até mesmo com este propósito, o desenho é uma forma de sanidade, de existência, de meditação. O resultado não são apenas as formas, o registro, o desenho, mas o sobretudo o tempo vivido, experienciado, uma espécie de encontro, ou acesso a certo lugares, aos quais só podemos chegar aleatoriamente.
Assim vou desenhando. De repente vejo um homem que desce o rio remando uma canoa. Ele para aqui e acolá entre os arbustos que margeiam o rio. Será um pescador? Um lavrador? Que horas ele voltará para casa? Somos dois desconhecidos, dois pontos em meio a muitos outros nesta paisagem. Ele se move no espelho d´agua do rio, executando uma ação tão importante quanto a minha, a de observar tudo isso daqui de cima. Que está ele fazendo lá embaixo? Não há resposta e talvez esta pergunta não faça sentido, contudo fazê-la é a maneira que tenho de prestar atenção. Ele percorre as margens do rio, e eu vou com ele. Vou revendo e me lembrando dos pontos que estive em minha infância, sozinho e com amigos a executar as mais diversas ações infantis: horas de prazer, medo, alegria e ansiedade à flor da pele: corridas, caças a passarinhos com estilingue, caminhadas, traquinagens, banho pelados no rio, brincadeiras sexuais que fariam ruborizar os politicamente corretos.... Onde está aquela energia? Onde estarão aqueles amigos? Sigo desenhando, margeando o rio. Penso, que quando terminar este desenho, o canoeiro, terá talvez desaparecido em meio as sombras e à distância. De qualquer forma este desenho também ficará interrompido em algum ponto. Nesse instante, Procuro o homem e sua canoa e não os vejo mais. O sol brilha no céu, a névoa de há pouco, parece que não existiu. O desenho fica inacabado, acho que ele nunca estará terminado.
Aos que me acompanharam até aqui, o meu abraço, desculpe os erros, tentei revisar, mas certamente fiz outros, sou mesmo incorrigível.

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