sábado, 4 de abril de 2015

O QUE ESTARÁ ELA ESCUTANDO?



Aqui estou eu com mais um texto longo para Facebook, por isso digo não perca seu tempo, mas se você o tem o sobrando vamos lá. Madrugada. Um cachorro uiva, grilos chilreiam, um galo canta rouco e, se me atento um pouco mais escuto as águas da cachoeira do rio que corta a cidade. O que quero escutar?

Faço uma fotografia da casa dos meus pais (agora da minha mãe) envolvida de sombras. Paredes azuis, piso e portas vermelhas. Nesta casa vivi minha infância e boa parte da minha juventude e, sempre que aqui venho fotografo esses espaços e suas sombras. Esta casa Com suas cores, com suas luzes que entram pelas janelas e pelas frestas e, com tempo com que a observo, sempre me dá boas fotos.

Minha mãe anda por esta casa como uma sombra. Certa vez, por volta do ano de 1985, minha então namorada me comentou: você sempre fala do seu pai, mas nunca de sua mãe... Essa observação me surpreendeu e me acompanhou pelo tempo, hoje eu me pergunto o que tenho a falar da minha mãe?

Em várias visitas que fiz a esta casa tentei falar com minha mãe, fazer com ela me contasse sua história, mas ela não se sentava à mesa para conversar, parece que não tinha o que falar ou não sabia falar. Contava fragmentos, da juventude, do pai, da vida devotada ao trabalho, nunca falava da mãe. Uma vez me falou sobre uma festa que foi e dançou muito, outra vez, do tempo em que estudou, e de uma viagem que fez a pé ou a cavalo à cidade da comarca, pois vivia na roça. Quando conheceu meu pai, estava noiva de outro homem e tinha apenas 19 anos, ele, 35 anos. O nome dela Abigail, o dele Euclides, o meu Fernando (de onde vieram nossos nomes?). Ela uma jovem branca, talvez a mais bonita da redondeza, ele, um homem negro, tropeiro e boiadeiro, talhado pelo sol que passava 15 dias ou mais no lombo de um cavalo conduzindo animais. De escola, eles não tiveram mais do que seis meses, aprenderam a ler-escrever, assinar o nome e a fazer as quatro operações (somar, diminuir, multiplicar e dividir). De namoro, menos tempo ainda. Namoro sem andar de mãos dadas, sem se sentar juntos na mesma sala. Vasculhando as gavetas velhas da casa, encontrei cartas dele a ela nesse período e as fotografias do casamento. Levei essas fotos comigo, mas até hoje não me sentei para escrever esta história ou a história daquelas imagens.

Certa vez, não conseguindo fazer minha mãe avançar na história dela pedi a meu pai que contasse o que ele sabia da história dela. Ele soltou que a Minha vó tinha tido caso com outro homem, durante o tempo de doença e morte do meu avô materno. Minha mãe gritou da cozinha, "mentira, deixa de ser mentiroso e fofoqueiro..." esse era um dos momentos em que meu pai ria e balançava a cabeça. Parece que a história da minha mãe não era para ser contada, não que não houvesse fatos, mas porque não havia quem contasse. Como escreve Sartre, a história de qualquer um pode ser literatura, desde que alguém a escreva.

Este mês ela completou 70 anos. Fala de doença, de dores e reclama de tudo, do passado, da vida que teve e da vida que tem. Tem medo da morte, mas se preparou para ela, mandou fazer um cordão de São Francisco, uma mortalha azul e um travesseiro, feito com tufos dos próprios cabelos, objetos com os quais ela quer ser enterrada. Por causa da sua surdez, ela escuta TV no último volume. A Casa vive então em barulho contínuo, o que escutar? Em um dos momentos em que passo pela sala, escuto o padre do programa "Divino pai eterno" que ela escuta falar: " reze pelo seu padre, ajude o padre da sua igreja... E se você não sabe falar bem do seu padre, cale a sua boca! Fecha a sua boca!" Eu fico estupefato. Olho para minha mãe e me pergunto, o que estará ela escutando?
Aos que me acompanharam até aqui, meu obrigado, desculpe os erros, deixo um Fotografia da casa.


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