quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

LIFE DRAWING III

Aqui vamos nós com mais um texto longo para Facebook, sobre a velha e contemporânea prática de desenhar, aqueles que tiverem paciência, sigamos em frente. Ainda mais essa, de modelo vivo. Enquanto alguns artistas a criticam eu a levo em frente, não apenas na busca do registro, mas sobretudo na construção gráfica do desenho com figura humana, que é sempre instigante, a vivencia com o outro e comigo mesmo, neste embate. Desenhar aquilo que eu vejo, desenhar aquele que eu vejo, que fala comigo, que tem desejos, tem história e fala comigo, desenhar o meu espelho, desenhar diretamente o humano.
 
Considero o modelo, ele me ajuda a criar, como muitos objetos me ajudam a criar, fruta, paisagem, fotografia, etc. Mas o modelo vivo é diferente. É essa diferença que me faz vir para a sala life drawing quase todas as manhas, aqui no Vermont Studio Center. La está Stephen, as 9:0hs em ponto. Ele me pergunta como quero trabalhar. Já fizemos várias seções de desenhos esses dias, eu tenho uma série grande feito com bico de penas em meu caderno, de maneira que para avançar tenho que mudar. Digo que vou começar fazendo o retrato dele. Então ele se senta a minha frente, mas nunca me olha nos olhos. Escolho alguns desenhos que não gosto e desenho por cima.

Conversamos um pouco. Ele me diz que passou noite no hospital, sente dores nas mãos e não está podendo mais tocar guitarra. Terá que fazer uma cirurgia delicada. Uma frase ou outra sobre o tempo. Vai esfriar o fim de semana, vai para cerca de 15'graus abaixo de zero. Brrrr... A maioria desses desenhos eu fiz com uma pena velha que falha o traço, interrompe o desenho. No início, quando descobri que só tinha essa pena estragada, falei, vai ser o que Deus quiser. Deixei correr, desenhei riscando, incorporei o traço duro. Lembrou-me Amilcar de Castro, que desenhava com o lápis duro, 9b, lição que ele aprendera com Guignard, desenhar sem sombra, sem arrependimento. Em parte foi por isso que surgiram tanta mancha nos desenhos, a pena enganchava no papel, ou não levava tinta, empacava…E nós estávamos fazendo poses de dez minutos, as vezes sentia que o modelo se cansava em certas poses e eu pensava deixá-lo descansar. Interrompia uma parte do desenho, deixava o modelo se mexer um pouco e continuava, outras vezes desenhava parte de corpo no mesmo plano, provocando assim uma quebra, um corte, que vejo agora ter relação com minha série de fotografias "Reverso".

Uma frase ou outra, Stephen me fala da filha que mora com mãe, pergunto como ela está, ele disse que não sabe, que tem pouco contato com ela. Liga para ela e não tem retorno. Por último diz que a filha mudou e não passou o telefone para ele. Compreendo o sentimento dele. Falo um pouco de mim, para ele não se sentir só. Filhos e pais separados. Tanta dor em corpos frágeis! Ficamos um tempo em silencio. Desenho o seu retrato, sobre desenho de um homem nu, deitado (ele mesmo). Fica estranho, multifacetado, cortado, fragmentado. Não sei dizer se está bom ou não, por ora fica assim. Aos que vieram até aqui, um pouco desse momento. Boa noite. Voa noite.



 
 
 
 

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